Flagrante com R$ 78 mil e dezenas de cartões: o que a lei diz sobre esquemas de golpes financeiros?
- Felipe Xavier

- há 2 dias
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De acordo com matéria veiculada pelo portal Midiajur, dois jovens de 21 anos foram detidos na tarde de 8 de dezembro, em Cuiabá, por uma equipe da Rotam, após a localização de mais de R$ 78 mil em espécie e diversos cartões bancários em nome de terceiros. As prisões ocorreram na região do Parque das Nascentes, nas proximidades da Avenida do CPA, e no pátio de um supermercado próximo, depois que os policiais decidiram abordar um veículo Fiat Mobi conduzido por um dos suspeitos. Durante a revista, foram encontrados grande quantia em dinheiro e vários cartões bancários vinculados a diferentes titulares, sem explicação plausível quanto à origem dos valores ou à razão da posse daqueles cartões.
Enquanto a ocorrência era atendida, a equipe policial apurou que o segundo jovem aguardava o comparsa em um posto de combustível, onde também foi detido. A dupla, o numerário e todos os cartões foram encaminhados à Central de Flagrantes, diante da suspeita de um esquema de golpes financeiros envolvendo possíveis práticas de estelionato ou fraudes bancárias. (Midia Jur)
A partir desse cenário fático, o enquadramento jurídico natural repousa, em tese, sobre o crime de estelionato, previsto no artigo 171 do Código Penal, bem como sobre figuras correlatas da legislação penal e da legislação especial de combate a fraudes no sistema financeiro. O estelionato é um crime patrimonial que exige, para sua configuração, a conjugação de alguns elementos centrais: emprego de artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento; induzimento ou manutenção de alguém em erro; obtenção de vantagem ilícita; e prejuízo alheio. Embora no momento da prisão, em muitos casos, ainda não haja identificação de vítimas específicas ou comprovação de transações fraudulentas, o contexto apreendido, dinheiro em grande quantidade, cartões bancários em nome de terceiros, ausência de justificativa lícita para a posse desses instrumentos, costuma indicar, como linha investigativa, o uso desses cartões para saques indevidos, compras não autorizadas ou movimentações em maquinetas vinculadas a contas de laranjas, o que é compatível com esquemas de estelionato e fraudes eletrônicas.
Importa ressaltar que a simples apreensão de cartões e dinheiro não basta, por si só, para uma condenação. No plano técnico, a autoridade policial e o Ministério Público precisam demonstrar o liame entre o material apreendido e efetivas operações fraudulentas, identificando, sempre que possível, quem seriam os titulares lesados, quais transações foram realizadas, a rota do dinheiro e a participação individual de cada investigado. Em investigações semelhantes, a polícia costuma requisitar extratos bancários, imagens de câmeras de segurança em agências e caixas eletrônicos, registros de geolocalização de aparelhos celulares e dados de maquinetas, a fim de comprovar que os cartões eram utilizados sem autorização dos titulares e em benefício do grupo criminoso. Também é frequente a imputação de associação criminosa (artigo 288 do Código Penal) quando se verifica atuação coordenada e estável de mais de três pessoas em esquema reiterado de golpes, com divisão de tarefas e estrutura minimamente organizada.
Outro ponto relevante é a possível incidência de tipos penais específicos relacionados a fraudes contra o sistema de pagamentos e cartões sociais, a exemplo de casos em que são utilizados cartões vinculados a benefícios como Bolsa Família, Auxílio Brasil ou outros programas assistenciais. Nessas hipóteses, a conduta atinge não apenas o patrimônio individual, mas também o próprio desenho de proteção social, o que leva autoridades a falar em fraude bancária, retenção indevida de cartão magnético e apropriação de valores de vulneráveis, com reflexos na dosimetria da pena e na percepção de gravidade social da conduta.
Do ponto de vista dogmático, a autoria e a participação também exigem análise cuidadosa. Terceiros que “apenas” guardam cartões, recebem valores em contas bancárias próprias ou cedem contas para movimentação de recursos podem ser enquadrados como partícipes ou coautores, a depender do grau de contribuição e do domínio do fato. O Direito Penal contemporâneo tem enfrentado, com frequência, a figura do “laranja”, aquele que empresta nome, conta ou CPF para operações suspeitas, e a jurisprudência vem reconhecendo que, quando há consciência sobre a função ilícita desempenhada, há responsabilidade penal pela participação no esquema, ainda que não tenha sido a pessoa responsável direta pelo contato com a vítima. Em contrapartida, a linha que separa mera imprudência de participação dolosa deve ser traçada à luz das provas do caso concreto, sob pena de se punir indevidamente quem não tinha ciência do golpe.
Na prática, casos como o noticiado ilustram o desafio de equilibrar a necessidade de repressão qualificada a fraudes financeiras com a preservação das garantias constitucionais de qualquer investigado. A prisão em flagrante é uma medida cautelar relevante, mas não substitui a investigação técnica: será por meio da análise de dados bancários, perícia em dispositivos eletrônicos, rastreamento de transações e oitiva de supostas vítimas que se formará um quadro probatório sólido. Só então será possível afirmar se houve, de fato, estelionato consumado, tentado, associação criminosa ou mesmo se se tratava de outra modalidade delitiva.
Como advogado atuante em direito penal e processual penal, entendo que situações assim evidenciam a importância de uma interpretação jurídica responsável e de uma investigação que vá além das aparências. A apreensão de dinheiro e cartões levanta suspeitas legítimas, mas cada conduta deve ser individualizada, as provas precisam ser produzidas e contraditadas com rigor, e eventuais responsabilidades penais devem ser definidas à luz do devido processo legal, da presunção de inocência e da estrita observância dos limites do tipo penal. Somente com análise técnica das provas, respeito às garantias fundamentais e correta aplicação da lei penal é possível diferenciar quem efetivamente integra um esquema de golpes de quem é apenas associado circunstancialmente ao contexto, evitando tanto a impunidade das fraudes quanto condenações injustas.
Por Felipe Eduardo de Amorim Xavier
Advogado Criminalista
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